Feministas furiosas

"She’s Beautiful When She’s Angry" é um documentário de 2014 que resgata a história do movimento feminista dos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970.
As primeiras imagens do filme mostram faixas e cartazes de protesto contendo frases de efeito semelhantes às que nos acostumamos a ver pelas ruas do País nos últimos anos: “respeita as mina”, “meu corpo, minhas regras”, e a indefectível sugestão de que se homens engravidassem, contraceptivos seriam distribuídos gratuitamente e o aborto já teria sido descriminalizado.
Do palanque de um evento vem a constatação: os argumentos feministas são antigos e já há muito queremos essas coisas. O que segue é uma pergunta um tanto retórica: “Deveríamos estar furiosas... vocês estão furiosas?”.
Estamos! Estamos furiosas porque faz tempo que queremos direitos muito básicos. Se já conquistamos alguns – como o sufrágio e acesso a educação, exemplos do quão basilares nossas demandas podem ser – foi com muito sangue, suor, lágrimas, textões e hashtags. Estamos furiosas porque sabemos que nada garante a manutenção dos direitos que já conquistamos. E estamos furiosas por ainda não termos conquistado, ao menos não no Brasil, o direito pleno à autonomia e controle total sobre nossos corpos. Estamos furiosas, e é irrelevante se ficamos ou não bonitas quando demonstramos nossa raiva.
O título do documentário é indicativo das tensões que circundam o debate feminista. Enquanto o filme oferece boas reflexões acerca do movimento, ele não o simplifica.
Declarar que uma mulher fica bonita quando expressa raiva alimenta ao menos duas interpretações contraditórias: a primeira corrobora com o vício social de associar mulheres e beleza, e a segunda festeja a beleza como combustível para a luta.
As duas interpretações são válidas: o feminismo, ao mesmo tempo, batalha pela desconstrução de feminilidades estéticas que dependem de um modelo hegemônico de beleza, e celebra belezas não hegemônicas em um projeto de empoderamento que visa fortalecer a autoestima das mulheres.
Incongruências como estas deixam muita gente confusa a respeito do feminismo. No entanto, um dos aspectos mais fascinantes do movimento é precisamente sua capacidade para não apenas entreter pensamentos conflitantes, mas progredir a partir deles. E isto o filme captura bem.
A diversidade de pensamento, embora muitas vezes difícil de digerir, é parte intrínseca do movimento, e o formato do filme reflete esta característica: ao invés de focar em uma pauta específica, a diretora escolheu mostrar a pluralidade de vozes que compuseram o Women’s Lib.
Para quem desconhece, as gerações mais novas que viveram períodos mais recentes da história, é uma boa oportunidade de se atualizar e conhecer ícones como Betty Friedan (autora de A Mística Feminina, considerado um dos livros mais importantes do século XX) , Virginia Whitehill (ativista conhecida por apresentar argumentos perante o Supremo Tribunal dos EUA durante o processo judicial que confirmou a legalidade do aborto nos EUA ). Outras são as autoras do livro Our Bodies, Ourselves, best-seller global sobre a saúde da mulher (ainda sem tradução no Brasil) e obra coletiva surgida a partir do trabalho de estudantes que compilaram informações – sobre menstruação, ciclos hormonais, orgasmo e aborto, por exemplo – que, na época, simplesmente não estavam disponíveis. Veteranas da Jane Collective (serviço clandestino de aborto baseado em Chicago), que revelam suas táticas para ajudar mulheres em necessidade. E o documentário não deixa de apontar para as lutas específicas das mulheres negras, que, além da exploração patriarcal, sempre tiveram que lidar com questões de discriminação racial.
"She’s Beautiful When She’s Angry" é um documentário delicioso para quem quer começar a conhecer essa história e convida espectadoras não familiarizadas a saber sobre a luta e as conquistas das mulheres que fizeram a chamada “segunda onda” do movimento.
Um filme revigorante para quem viveu ou já conhece sobre o assunto. A edição, que combina imagens antigas e atuais de entrevistas, teatro de rua, protestos e discursos políticos, parece ter sido feita para salientar o valor de conhecermos a história e o trabalho de nossas precursoras. ;-)